Versos Livres




CALA A BOCA, MINHA VIDA
A Maurício Floriano
A Madson Vaz


A incógnita pendurada
No trapézio do crânio dos que me conhecem.
Sou, como e quando visto
A pele da dúvida em mutação:
Eu, cafajeste sem cabeça
Pintando nas telas dos jornais
Eu, o anjo das mil caras
Crucificado em telegramas clandestinos
E condenado nos becos ocultos
Das mesas e comitês centrais
Eu, o violador de covas
De uma cidade fria
Eu, o bruxo renovado
A cooptar ovelhas brancas
E a semear vertigens
Mil e uma vezes
A mentira apropriando-se
Dos escombros da realidade.
Agora, o eu puramente
Encarnado de espíritos desconhecidos
O eu revelando a ponta da faca
Nas chagas secas,
Os meus trinta minutos
De expectativas teatrais,
O ator fracassado no palco
O silencioso combate nas ruas,
O grito de pavor
Que escorre do ventre dos precipícios.
Nas fronteiras do futuro,
A cerca imperdoável do passado,
Pondo a nu o imposto dos erros,
O cineasta esquecido
E a arquivada loucura estética,
explodindo as imagens incompreendidas
da bolha de fogo
incendiando os pés nervosos de balé vencido
pelo chão e pelas horas
e a ninguém restará
a arrogância decepada de razão
e a ninguém será doado
o choro de cebola cortada
pelos crocodilos do tempo
A vida com seus Corvos humildes
E abutres pacientes
Virá devorar a roupagem áspera
De um cartaz abandonado
Nos braços enrugados das praças
As sílabas perdidas
Nos labirintos dos bares
Faço dos meus dedos
a pena que registra a comunhão
do meu sofrer e do meu gozo
já desprovido de centelhas arrebatadoras
já castrado do amor pela mulher dos escritórios
já gerenciando as flechas e as flores
já incorporando as raízes
que irrigam a energia
de minha diferença plena e livre
como o amor enfurecido
dos cavalos do cão.



IRENE TAMBÉM FOI MINHA


Irene já foi cantada
Em prosa e verso
Por Guevara na solidão dos Andes
Por Manoel Bandeira em Lirismo libertário
Por Gargalhadas dos batalhões tropicalistas
Por velhos boleros das serestas saudosistas.

Irene capaz de ser o elo comum
A unir Caetano Veloso e Agnaldo Timóteo
Num cortejo único.
Mas, a minha Irene,
Ah!, minha Irene!
É muito mais que isto.
Que o diga o meu corpo,
Quando se sentiu sem ela.
Que fale minha alma
Depois de se ver sem sua companhia.

Isto é o que dar
A mania de poeta
De embriagar-se na alegria
Ao descobrir sua musa.
Acaba ficando apenas com a lembrança,
Como a que guardo de Irene
Quando para mim abria as pernas
e escancarava o mundo...




POSSE SOB SEM PÚBLICO

Falta-me tempo no cartório necessário
Para escritura dos poemas dia à dia,
Contento-me em invadir o imaginário,
Com a firma reconhecida da poesia...

À MARGEM DOS DIAS LINDOS


Hoje revolvo, com timidez
As ruínas
Do pedestal destruído
E vejo por entre os braços dos escombros
Álbum de fotografias carbonizadas.
Os dedos do medo
Esculpindo um toco de vela
Apagada e semi-morta
Ante a chama do discernimento.
Um veleiro de Rimbaud
Baila no imaginário dilacerado
Minha agonia é um  barco à deriva
E se o sal do cimento de minha alma
Deflorasse as muralhas
Todo o colo das calçadas
Viria o lodo azul das novas pedras.
Hoje, já não me intimido
Em escrever a palavra linda
Nas areias tristes do seu rosto
Ou qualquer outra
Que sobrevoe ícara
Nas vibras aladas das minhas vísceras.
Não, não me engrandecerás,
Pois expor verdades
Não é ceder a obséquios
Mas acima de tudo
Ir além dos decassílabos da hipocrisia
Mais tarde, quando as cinzas dos telhados
Borrifar no dorso do esquecimento,
Ninguém falará ou tentará dizer algo.
Nas,
Nem o hálito da noite
Nem teu lirismo dissimulado
Nem tua frieza crua
Nem meus braços roucos
Nem meu cheiro de cigarro
A mansidão do silêncio
Agitará os estilhaços dessas algemas
E nem lembrará mais
Que um dia aqueceste a fogueira do gelo
Com a sede dos meus olhos cegos
E nem tampouco sentirás
O trem frio atropelando as pernas
De farrapos humanos
Descanso...
Recomeçar é atravessar
O chão de agulhas como se pisasse a relva
A vagar na ciranda dos caprichos.
Amanhã ainda irei ver...
Um coco de roda
E os dias lindos estarão
Bem mais próximos que o cotidiano